Trouxe um Espírito de lá

 Acredito que seja ela. Porque estive entre elas hoje de manhã. Eram criminosas, assim foram julgadas. Dizem que o intuito é educativo, mas estão em punição. Suas vidas privadas de liberdade não tem méritos, só vergonha e busca de sobrevivência. Devem simular, esconder, obedecer por medo, por culpa, por conformidade. Algumas com ódio, esperando o tempo de voltarem à ativa. Acrescenta-se o asco, a falta de espaço e o acotovelamento constante entre si. O suor, o calor, os mosquitos. 

As vaginas minam secreções pelo desequilíbrio da energia vital. Não há motivo maior que esse. Os antibióticos são paliativos absolutos. Secará um pouco aquilo que exsudará logo em seguida. Vivo a ineficiência total da medicina nos desgastantes dias de prescrição. Reduzimo-nos a isso, efetivamente: prescritores. O automatismo colocado à prova. A inteligência tímida escolhe entre poucas opções para o tratamento do único miasma: a sífilis do caráter e das emoções. Algumas com desespero no olhar. Outras, de tanto desespero, já nem manifestam mais na face. Outras ainda, deixaram o desespero para trás, um dia, no primeiro ou no segundo assassinato. 

Então, entre um carimbo e outro, filhas choravam às suas mães ao meu lado. E ainda pior, mães choravam na visão de seus filhos. Há quanto tempo estavam isoladas em seus pensamentos e suas mesquinharias de prisão longe do motivo de suas maternidades? Elas não podiam abraçá-los, beijá-los, agarrá-los com força para mais não soltar. Não era uma sala de espera, com intimidade e sofá. Era uma fila de detentas a espera de uma imagem no celular. Era aquela imagem, movediça e nebulosa, atravancada e opaca que elas adoravam, soltando beijos na vontade que atravessassem a tela. Uma delas, porque o menino fazia aniversário em breve, lembra com ênfase:

- Não esquece de fazer o bolo dele. 

Há 2 meses ou 2 anos na cadeia. "Não esquece de fazer o bolo dele". Quando ela sair dali estará pronta para fazer o bolo dele. Daqui há mais 2 meses ou mais 2 anos. Fazer o bolo dele é seu horizonte. Então, pensará nos ingredientes em um dia, na melhor forma de fazer em outro. Para gastar menos os dias, pensará em um ingrediente por dia, e em cada passo de fazer em cada um dos dias subsequentes. No dia em que sair, será mestre cuca confeiteira. Quem sabe se terá dinheiro? Terá de roubar para fazer o bolo?

***

Ó anjos da punição, que se vestem de negro, asas negras, rostos sombrios, olhos de um céu negro infinito.  Ó anjos vigilantes que sabeis os motivos e a justiça de tudo. Tendes vós piedade? Será vossa piedade uma de lágrimas como a nossa? Entram no íntimo do cárcere dos corpos para averiguar se ainda há alma que possa ser salva. Acredito que sim, ó anjos, por causa do bolo. Enquanto houver bolo, há salvação. 

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